Autor: Bruno Franques

Bruno Franques, sociólogo, mestre em educação, 42 Consultor, nível superior | brunofranques@gmail.com Atua como agente social pela AVSI Brasil em abrigos para refugiados venezuelanos em Boa Vista-RR. Como coordenador pedagógico, em um projeto do UNICEF em parceria com a Fraternidade Internacional, foi responsável pela implementação de espaços educativos em dez abrigos simultaneamente, estabelecendo os parâmetros iniciais para esse desafio pedagógico. Pesquisa, estuda e atua como consultor e palestrante na área de Educação em Emergência, proposta concebida pelo autor na prática do contexto migratório, dentro e fora dos abrigos, e que se expande no contexto especial da pandemia mundial ocasionada pelo Covid-19 e suas consequências para a educação em geral, dentro e fora das escolas. Tendo cursado comunicação social na primeira graduação, e educomunicação na Pós-Graduação, sua atuação segue ligada a este campo, mesmo desempenhando outras funções. Seja como designer freelancer, voluntário ou em atividades extras nas instituições em que participa, suas habilidades comunicativas em planejamento, criação, redação, vídeo, fotografia e design gráfico constitui ferramentas importantes de apoio e potencialização dos projetos. Atuou na TV Cultura de São Paulo, no Centro de Memória Audiovisual, onde suas áreas de especialização – sociologia, comunicação e educação – puderam se desenvolver concomitantemente. Militante de movimentos sociais, sempre articulando suas habilidades em prol da causa em pauta, intensificou sua participação com agroecologia e segurança alimentar em comunidades tradicionais e assentamentos de reforma agrária.

Escrituras Possíveis. Ep 03: Literatura e criação artística como processo de cura em meio à pandemia

Terceiro episódio do programa “Escrituras Possíveis: Experimentações literárias para mudar o mundo”. Bruno Franques lê o conto “Fred, A Mosca de Nietzsche”.

Este projeto é apoiado pelo Governo do Brasil e pelo Estado de Roraima, por meio da Secretaria do Estado da Cultura, com recursos provenientes da Lei Federal no. 14.017, de 29 de junho de 2020

Aulas de Inglês

Particular individual, em turma, entre amigos ou família.

Com metodologia própria a partir da Educação em Emergência, Método Paulo Freire e Metodologias Ativas, as aulas são inteiramente personalizadas de acordo com as necessidades dos alunos:

  • Disponibilidade de tempo: Vamos ajustar as aulas para encaixar na sua agenda.
  • Objetivos e metas: Vai viajar? morar fora? precisa realizar uma prova, estudar, ler e compreender? Iremos planejar nossos encontros para melhor atender suas necessidades.
  • Nível inicial e almejado: How is your english? Tranquilo, faremos uma avaliação para identificar seu nível atual e projetar os estudos para que sua meta seja atendida no tempo certo.
  • Possibilidades financeiras: Se não der pra fazer sozinho podemos montar uma turma. Seja como for, vamos conversar para chegar num valor que viabilize nossas aulas!
  • Metodologias ativas e hibridas: Protagonismo significa que o educando é autor de seu próprio aprendizado, e a metodologia irá estimular sua autonomia. Pedagogias híbridas são formadas por ferramentas diversas da tecnologia da comunicação, com aulas presenciais, atividades online e remotas.
  • Método Paulo Freire: Conteúdos que dialogam diretamente com seus interesses e que contribuem para o aprofundamento de sua visão de mundo e para a conquista de sua autonomia!
  • Conteúdos personalizados: Cada um é um universo, e traz consigo bagagens de experiências e memórias, além de diferentes aptidões e interesses. Tudo isso será levado em conta quando formos elaborar juntos nosso planejamento das aulas.
  • Música, poesia, arte e cultura:
  • Aulas presenciais em Boa Vista-RR
    • No Jardim Floresta, na sua casa, escola, escritório, praça, sítio, praia…
  • Aulas online em qualquer lugar

Bruno Franques é comunicador social, educomunicador, sociólogo, mestre em educação, escritor e poeta. Morou na Inglaterra no início do terceiro milênio. Tradutor, interprete e professor.

Entre em contato para fazermos uma simulação e planejarmos juntos seu sonho de aprender inglês!

See you!

Bruno Franques
brunofranques@gmail.com
95 991207157

Uma história embrionária

Por Bruno Franques

Enquanto óvulo era, nada podia sentir, muito menos pensar. Seria muito estranho se percebesse o espermatozoide lhe fecundando e suas primeiras células sendo formadas, divididas, multiplicadas e modificadas. No entanto em algum momento da gestação, como uma luzinha que vai acendendo muito devagar ao ponto de quando a notamos não sabemos ao certo quando apareceu, uma fagulha, um estalo, num momento sublime indecifrável, a vida miraculosamente surgiu. Suavemente, sem a objetividade do pensamento, sem poder elaborar suas primórdias sensações em uma linguagem ainda não estabelecida, suas percepções foram acontecendo como para quem desperta de um sono profundo e ainda não é capaz de separar sonho e realidade.

Existia no escuro do silêncio de seu próprio ser em constituição. Era como se flutuasse na imensidão do Universo sendo dele tanto parte como todo. O mergulho para dentro de si ao qual nos esforçamos tanto em acessar depois de adultos, buscando silenciar os pensamentos, vozes, sons e ideias que nos acometem aos turbilhões, era para ela sua única realidade infinita e imponderável. Nesse estado, entre o tudo e o nada, antes de se configurar momentaneamente como uma manifestação individual da energia cósmica, tudo era possível. Ainda solta entre o passado e o futuro, que para ela não faria ainda sentido algum, o tempo avançava para frente e para trás, sendo sempre presente. Transitava entre o Big Bem, buracos negros, supernovas e quazares com a mesma desenvoltura de um espírito que habita nossas florestas e passeia entre corpos, rios, árvores e cachoeiras.

(…)

Sem saber que seu destino estava sendo traçado conforme suas células iam ficando cada vez mais complexas, se agrupando em órgãos, ossos e tecidos, passava a maior parte do tempo dormindo, confortável e plena, enquanto seu corpinho ia sendo formado. Lampejos de emoção, amor e comoção a inundavam de quando em vez, e ela despertava por alguns instantes, extasiada, sentindo seu nirvana absoluto, e se entregava em seguida novamente ao seu sono profundo.

Quando estivesse pronta, chegaria ao mundo numa realidade específica, num ponto da conjuntura histórica em constante modificação, imersa numa sociedade com uma cultura e uma língua que iriam moldar suas possibilidades de interação com tudo que existe. Ela receberia como uma dádiva todo avanço da ciência e do entendimento do funcionamento do mundo, toda a filosofia, a arte e a poesia possível. Mas junto com esse pacote, ela descobriria a perversidade da crise civilizatória que nos leva a toda a velocidade para o abismo e sem o saber, receberia o fardo da esperança, de que faria parte da geração que chega para construir uma nova realidade. Antes que seja tarde.

Em uma mistura de movimento involuntário com o despertar da consciência, numa manhã de calmaria, ela se espreguiçou pela primeira vez. E enquanto esticava suas perninhas e bracinhos recém-constituídos ouviu aquela música angelical que a acompanharia para o resto da vida. Era o som das batidas de um coração que a amaria para sempre. A cada pulsar estrondoso seguia uma melodia escorrida, do sangue circulando ao seu redor e a música era completa com o ruminar dos outros órgãos de seu mundo maternal.

Com o passar do tempo, mais e mais ela ficava desperta, ainda embriagada de sonho da pré-vida, imersa no paraíso idílico que formava seu universo particular. Esticava-se daqui, puxava dali, cambalhotas e piruetas se intensificavam sem saber por quê. Foi quando ouviu um novo som, que lhe parecia muito familiar, aconchegante e confortável. Uma voz grave parecia vir do exterior, entoando o Ohm, fazendo tudo vibrar em uma calmaria absoluta e por mais que ela se esforçasse em permanecer desperta para aproveitar ao máximo aquele momento, em poucos segundos estava novamente entregue ao seu sono peculiar.

Aos poucos ouvia com mais nitidez os sons que vinham de fora, às vezes lhe causando estranheza e outras, sensações novas que lhe completavam seu bem estar. Eram ruídos e vozes, sons e barulhos, músicas e melodias. Bailava nos acordes do mundo antes mesmo de saber que logo era para lá que seguiria.

Conforme ia tomando certa consciência de seu corpo que não parava de crescer, menos espaço tinha para curtir sua corporeidade. Havia passado de uma sensação de liberdade infinita, onde tinha o cosmos inteiro, sem medida de tempo ou espaço, para um aperto uterino cada vez mais limitado. Logo não caberia mais onde estava e seria prontamente entregue à vastidão do real, que reconheceria anos mais tarde ao contemplar o céu noturno com suas estrelas, planetas e galáxias. Poderá então banhar-se nas cachoeiras, rios e oceanos sentindo outra vez a densidade da flutuação fetal. Será abraçada, acolhida e acarinhada inúmeras vezes, experimentando um pouco daquele acalento que por enquanto era total. Poderá andar descalça por florestas e lavrados percebendo em seus pés o pulsar da terra que lhe restituirá a calma e a tranquilidade original. Subirá montanhas para contemplar os horizontes e se aproximar dos céus. Conhecerá outras pessoas, outros povos e culturas que a ajudarão a relativizar suas perspectivas pessoais. Ouvirá histórias antes de dormir e em volta de fogueiras e aprenderá a ler para acessar o conhecimento deixado por tantos que viveram antes dela. Transitará pelo mundo a pé, de bicicleta, sozinha ou de mãos dadas com alguém, sob o sol e sob a chuva. Experimentará o amor, a paixão, o tesão, a empolgação e a felicidade. Mas também sofrerá com decepções e tristezas, perdas e expectativas frustradas. Padecerá com o sofrimento do mundo, cataclismos naturais, desastres ecológicos, políticos e sociais, guerras, doenças, injustiças, miséria, fome e violências de todo tipo. Mas terá a sua individualidade, seu estar no mundo, sua história. E construirá sua vida a partir de suas próprias escolhas, apesar dos limites que a realidade lhe entregará.

Na verdade, para sermos otimistas e acreditar que ela terá algum livre arbítrio, alguma possibilidade de desfrutar de toda sua potência de vida, teremos que imaginá-la como uma exímia esportista da existência. Terá que se desvencilhar das expectativas nela projetadas e de todo tipo de traumas que por ventura terá que enfrentar. Sendo mulher, com a orientação sexual que lhe for natural, com vocação ou não para a maternidade, terá que se posicionar firmemente diante dos machismos e sexismos do nosso patriarcado. Dependendo das condições econômicas de seu berço, de sua classe social, poderá se encontrar em uma situação de miséria e opressão da qual seria extremamente difícil e penoso se desvencilhar. A tonalidade da cor de sua pele, a nacionalidade de seus pais, seu local de nascimento, entre outros fatores poderão facilitar ou dificultar sua imprescindível luta por autonomia e visão crítica da realidade.

Por enquanto, na maior parte do tempo, mesmo comprimida por todos os lados, sentia-se confortável, segura e aquecida. Às vezes, como se ingerisse cafeína ou alguma substancia estimulante, precisava se mexer, se esticar, mudar de posição e rodopiava e girava até se cansar ou ouvir algum som reconfortante que a induzisse novamente ao seu nirvana habitual.

No entanto, mesmo sendo uma nova vida que se prepara para surgir, nenhum átomo que a constitui é novo. Todo seu corpo está sendo formado a partir dos códigos genéticos acumulados durante toda a história da vida na Terra e que lhes foram entregues pelo seu pai e por sua mãe. E a partir desses códigos, suas células começam a se formar se apropriando do material disponibilizado pelo corpo de sua mãe, que por sua vez está em constante troca com tudo à sua volta: pela alimentação, respiração, pelo contato e pelo simples fato de estar no mundo. Há quem diga que além do DNA, que irá instruir todo o processo construtivo de sua materialidade, cada átomo lhe brindará com algo de sua própria trajetória, desde quando vibrava numa partícula única a ponto de explodir num Big Bem estrondoso. Ela será um representante da espécie humana, mas carregará em si toda a história do Universo e de tudo que já existiu no planeta Terra. Algo próximo do que Jung chama de inconsciente coletivo e como os povos ancestrais reconhecem seus antepassados em seres não humanos.

Seja como for, ela nascerá em um momento em que o ser humano está sendo responsabilizado pela destruição de sua própria realidade e possibilidade de existência. No entanto, não queremos lhe marcar a testa com um sinal trágico. Queremos que ela tenha consciência e cuidado. E descubra seu destino ao fazê-lo com responsabilidade e coragem.

Ela viverá em Gaia, como parte do superorganismo planetário. E estará em uma Era decisiva para a espécie que representa. Pode ser que faça parte das últimas gerações de humanos, que deixarão de existir junto com outras espécies e não poderão presenciar a incrível resiliência do ecossistema planetário que a partir de então se regenerará. Há alguma chance, porém, de que ela faça parte do início da imprescindível e drástica mudança no comportamento da humanidade e seu nefasto modo de vida capitalista industrial globalizado. Ela terá então talvez a chance de aprender com a diversidade das culturas e manifestações da vida, em um novo mundo que será pautado pelo amor, humildade, empatia, respeito e coexistência colaborativa. Desenvolverá uma percepção holística do mundo onde a vida é uma jornada a ser vivida em harmonia, profunda conexão e interdependência entre todos os seres. Talvez ela veja as sociedades humanas exercendo a prática do bem viver em variações especifica de cada cultura. A tecnologia, a ciência e o conhecimento valorizando saberes ancestrais articulados com pesquisas de ponta.

Mas algo aconteceu abruptamente. Seu espaço começou a se comprimir de maneira violenta em contrações cada vez mais fortes e constantes. De alguma forma ela sabia que tudo estava para mudar e se preparava para o que viesse. Como quem se concilia com seu passado no final da vida e se prepara para morrer, ela se conciliou com seu futuro e estava pronta para nascer. A pulsação do ambiente se intensificava e era como um batuque ritual que se acelerava infinitamente. Gritos de dor e euforia completavam aquele ambiente surreal e quando ela achava que seu mundo estava perdido, sentiu-se deslizando para fora de si em uma luz extremamente intensa que desintegrou tudo ao seu redor enquanto ela flutuava para exercer sua existência, que para ela, era o começo da vida na Terra.

Deusas, mulheres e feiticeiras

Por Bruno Franques

Via Láctea, super nova estrelas e quasares

Galáxias femininas, ciclos lunares

Pachamama, ventre sagrado

Gaia, Madre Tierra, fomos todos por vós gerados


Em suas entranhas e crateras

Grutas, florestas e biosfera

De toda forma de existência, origem materna

Abundância, fertilidade e vida em todo lugar

Fatos que a história do homem

Tentou coibir, dissimular e apagar


Amazonas, feiticeiras, bruxas e guerreiras

Quantas heroínas queimadas nas fogueiras

Deusas sagradas, divindades esquecidas

Anatole, Diana, Astarte e Afrodite

Kali, Radha, Fréya e Nefertite

Ixchiel, Tonantzin, Iara, Jaci e Naná

Deidades sacrificadas de lá pra cá


Sob a dominação masculina ocidental

Avançamos destruindo tudo que é belo e vital


Da Pangéia à colonização recente

África violentada, Matriarcado dizimado

Um continente inteiro subjugado, subtraído, esquartejado

Nessas expansões imperialistas devastadoras e indecentes

Suas filhas de lá arrancadas, são hoje aqui afrodescendentes

Iansã, Oxum, Obaluaiê e Iemanjá

Renascem no novo mundo do lado de cá


Suas lutas se unem com as anfitriãs

Caminhando lado a lado como irmãs

Abya Yala, todas as suas filhas e mais

Guaraci, Muirakitã, Rudá e Jaci

Deusas maternais que há muito tempo vivem por aqui

Mulheres indígenas e suas originárias ancestrais

Curandeiras e pajés transitam entre mundos astrais

Caciques e mestras do bem viver

Atuam com práticas enriquecidas pelo tradicional saber

Para além de tudo que podemos ver


E não adianta a história tentar apagar

Apesar de tudo que fizeram passar

Dá um Google e busque que irá encontrar

Mulheres de luta, em tudo quanto é lugar

Em qualquer tempo e espaço

No cotidiano, na miséria e no altar

Em rede, luta e protesto

Elas agora têm um manifesto


O primeiro Encontro de Mulheres Negras Latinas e Caribenhas

Em 1992, na República Dominicana Aconteceu

No debate, o machismo, o racismo e formas de combate

Uma rede de mulheres se fortaleceu

E a data 25 de julho, enfim a ONU reconheceu


A complexa feminilidade, é hora de exaltar

Muito além da beleza, outra forma de lutar:

Pelo empoderamento de toda mulher, em qualquer lugar

Reforçar os laços, solidariedade

Todas juntas, em Sororidade,

Contra a cultura do estupro e a objetificação

Violência doméstica e toda forma de opressão

Pelo fim do feminicidio e o masculinismo

Disparidade de gênero e androcentrismo

Contra o machismo e toda forma de sexismo

Pelo fim do racismo e qualquer maneira de discriminação

Violência de gênero, em casa, na rua ou em algum canto de nação


Pela autonomia de seus corpos, não é não!

Autoestima, essência, ciclos, natureza e conexão

Menstruação, gestação, parto e amamentação

Maturidade com maternidade, ou não

Empoderamento, consciência individual e coletiva

Capacidades e qualidades, percepção ativa

Sagrado feminino, o direito ao gozo e ao tesão

Identidade de gênero, sexualidade em qualquer orientação


Aquelas que a história Insiste em querer calar

Vamos com toda reverencia homenagear

De Amy Garvey, dramaturga jamaicana, intelectual

E Sara Gomez, cineasta musicista, cubana magistral

À Djamila Ribeiro, nossa brilhante filósofa brasileira atual


Um salve às agricultoras, rezadeiras e benzedeiras

Quebradeiras de coco, artesãs e rendeiras

Lia de Itamaracá, nossa formosa cirandeira

Dona Ivone Lara, sambista e cantora magistral

Chiquinha Gonzaga, maestrina clássica e do carnaval

Zélia Barbosa e suas canções de protesto

Com Elza Soares, que fez do planeta Fome um manifesto

Virginia Brindis de Salas, ativista e poeta afro-uruguaia

Com nossa Carolina de Jesus em seu quarto do despejo

Mostraram que miséria e opressão não apaga o desejo


Saludos às hermanas venezuelanas refugiadas

Nos abrigos novas vidas, esperanças renovadas

Conheça Martina Carrillo, que liderou as revoltas negras no Equador

Maria Remedios Del Valle, lutou pela independência argentina com louvor

Sanité Bélair, tenente heroína do Haiti

Teresa de Benguela, rainha dos quilombos daqui

Como Dandara, do Quilombo dos Palmares

Levaram a luta contra a escravatura a outros patamares


Um salve a guerreira da maré, com toda sua fé

Marielle Franco, da igualdade uma sentinela

Na política, na academia, na comunidade e na favela


Comandanta Ramona, do Chiapas revolucionária

Dolores Cacuango, líder indígena pela reforma agrária

Monja Roja del Mayab, campesina mexicana

Domitila Chúngara, trabalhista boliviana

Rigoberta Menchú, Nobel da Paz guatemalteca

São tantas mulheres, tantas vidas de batalha

Que para fazer justiça, o poema viraria uma biblioteca


Tantas mães, avós e madrinhas em luto

Suas filhas, heroínas assassinadas

Pela truculência desse patriarcado bruto

Covardemente silenciadas


Se a humanidade hoje

Na pandemia dessa crise civilizatória

Está a beira do abismo

 Numa encruzilhada sem escapatória

É porque o colonizador boçal

Homem branco, bárbaro, patriarcal

Espancou, violentou e matou

Silenciou e acabou com tudo que encontrou


Mas se ainda alguma chance a humanidade tiver

Virá da resiliência e valentia da mulher

Guerreira, matriarca, mãe e menina

Nosso futuro depende hoje, da força feminina


Não se trata de dar voz

Elas já cantam com afinação e harmonia

Nem de resgatar ou ajudar

Atuaram sempre com independência e maestria

Temos é que parar de boicotar, assassinar e violentar

Reconhecer na história o seu merecido lugar

Ouvir com reverencia e deixar-se guiar


Por todas as mulheres negras

Da America Latina e do Caribe

Pedir perdão em profunda gratidão

Em reverencia às suas lutas

Contra toda forma de opressão

Contra o machismo e a misoginia

Contra toda forma de tirania


Exaltar além da sua beleza

Sua leveza e resistência

E como um grito de louvor

A toda sua potencia de amor

Pois graças a elas

A esperança ainda canta

Em nome da mãe, da filha e da alma santa.

Pela liberdade e igualdade

Um grito que ninguém mais coíbe

A arma da humanidade

Tem agora outro calibre

Viva as mulheres negras

Da América Latina e do Caribe

*Imagem de destaque no site Potere Social, que disponibiliza muitos materiais bacanas para trabalhar o “Dia Internacional da Mulher Latino Americana e Caribenha”: https://www.poteresocial.com.br/25-de-julho-dia-internacional-da-mulher-negra-latino-americana-e-caribenha/

Abraços sem fim

Bruno Franques

Tem dia que só quero um abraço
Sem palavras ou intenções
Um abraço longo e silencioso
Suave e sincero
Apertado e calado
Fechados olhos fechados
Sem perguntas ou consolos
Sem penas, mágoas ou pesares

Que é para o tempo parar
Um abraço de por do sol
Som dos insetos enchendo os olhos
Um mergulho nos braços sagrados
Do mundo reencantado
Voltar a ser criança sem se preocupar
Um abraço da cor do luar

Queria ter em meus braços outros braços para abraçar
Em meu peito outros sonhos para embalar
Sob meus afagos e carícias
Com suas dores e alegrias
Seus mortos e minha feridas
Meus mortos, todos mortos

Mas nada disso importa
Cada vida, perfeita e bela
Sofridas em vão não vida
Enterradas no chão sem vida
Depois nem braços nem abraços
Nenhuma mais ilusão

Queria mesmo era um abraço
Mas sozinho os olhos fecho os olhos
Meus braços, meus braços
Cheios de mim, vazios de mim
Num dia normal bastaria
Mas o nada que vai de meu peito
Às pontas de meus dedos sem vida
Se tivesse você e seus abraços
Em seu peito o meu perfeito defeito
Eu sozinho só tenho meus braços

E então tenho nada tenho
E sem nada fiquei nada
Foi do nada que vim sem
E para lá voltarei nada

E por isso já não espero
Nada mais, nada nada
Só um abraço, isso sim
Um abraço
Um silencioso suave sincero
Tem dia que apenas espero
Um abraço suave e sincero
Um abraço em seus braços
Em meus braços os seus

E por isso já não espero
Nada mais, nada nada
Só um abraço, isso sim
Um abraço, abraço sem fim

Imagem destacada:

Marijana Rakićević,

Painting

Size: 19.7 W x 27.6 H x 0 D in

https://www.saatchiart.com/art/Painting-HUG/714287/4153233/view

Educação em Emergência

Educação em Emergência é uma proposta nova, concebida em contexto emergencial, aplicada no acolhimento de crianças refugiadas dentro dos abrigos, mas que logo se espalhou para as salas de aula comuns, que também recebiam essas crianças. E em seguida, percebemos sua utilidade para se trabalhar com a diversidade presente no estado de Roraima desde antes da crise migratória, com a presença de crianças migrantes e de etnias diversas da região. Então veio a pandemia, com seu impacto na educação durante a quarentena e na expectativa da volta ao espaço escolar. Percebemos que o que começou a se desenvolver em um contexto específico se expandiu e se tornou essencial para o período em que vivemos não só onde começamos, mas em todo o território nacional e, porque não, no mundo todo.

Se a especificidade dos abrigos nos trouxe a realidade latente de crianças e adolescentes com traumas recentes, onde a Pedagogia da Emergência se encaixa perfeitamente, os percalços e dificuldades de nossa sociedade doente já causavam danos silenciosos há muito mais tempo. E a pandemia veio como um tsunami gerando novos sofrimentos enquanto destacava o que já estava insustentável.

Um sinal de alerta soa há tempos sobre a ineficácia dos sistemas de ensino convencionais. A escola no formato militar-fabril com alunos enfileirados, uniformizados, divididos por sua data de fabricação, forçados a conhecer o mundo a partir de fórmulas ultrapassadas expostas em um quadro negro ou branco, não atende mais às necessidades contemporâneas. A emergência que se coloca à educação é reconhecer cada criança como um indivíduo único, com seu histórico, interesses e aptidões e estimulá-los ao pleno desenvolvimento enquanto ser humano, íntegro, responsável, pleno, com seus potenciais desenvolvidos, apto à construção de um mundo mais justo, ético, diverso e sustentável.

Enquanto a educação convencional de certa maneira contribuiu na construção e manutenção dessa realidade apocalíptica, diversas propostas alternativas foram surgindo pelo mundo todo. São teorias, conceitos, estudos e pesquisas que vem se desenvolvendo como práticas inovadoras para a transformação necessária que precisamos empreender.

Em um contexto emergencial, diversas dessas propostas alternativas são colocadas em prática, seja pelo ineditismo da situação que requer criatividade para lidar com as problemáticas e desafios específicos, seja pela relativa liberdade de experimentação proporcionada pelo caráter não formal desses espaços.

Assim, o que chamamos de Educação em Emergência, começou a ser delineado no chão de brita dos abrigos para migrantes venezuelanos no Brasil, seguiu para as escolas do Estado e agora se abre para todas os espaços educativos possíveis.

Esperamos assim contribuir para que a escola possa ser um espaço seguro, de acolhimento das crianças e adolescentes traumatizadas em meio a crise em que vivemos e ainda aproveitar a oportunidade gerada para levar a educação a exercer sua plena função social de formação de pessoas integras, emancipadas, de pensamento crítico e engajadas na construção de um mundo melhor.

Monte de Histórias

Um conto de Bruno Franques

Monte de Histórias

por Bruno Franques

O relato a seguir foi transcrito a partir do que pude entender das anotações encontradas ao acaso, em um pacote de papéis dobrados, fragilmente preso em uma folha de buriti na região de lavrado entre Boa Vista e Pacaraima, em Roraima, em meados de novembro de 2018. Não pude checar sua veracidade por falta de indicações nos fragmentos restantes e também não serão possíveis novas investigações, uma vez que por conta de seu péssimo estado de conservação – com sinais de fogo, água, lama, ações do tempo e intervenções de animais – pouco durou em minhas mãos. Tive tempo de memorizar seu conteúdo, completando os trechos ausentes com inspiração, dedução e criatividade. Cada qual que tenha para si a impressão que lhe couber. Remeto-lhes à peça de Pirandello: Assim é, se lhe parece!

Não sei bem o que senti, mas a força com que me inundou a certeza que deveria subir o Monte Roraima foi crescendo e tomando todo o meu ser, passando de uma vaga ideia a pesquisas sobre a história, geografia e ecossistema da região até a busca por um guia que me levasse à realização dessa missão que já se me apresentava como inevitável. Agora, depois de dias incontáveis nessa jornada, já não sou mais o mesmo que a planejara.

Peço que me perdoem pelos atropelos da escrita, mas estou em um processo catártico de registro do que se passou, como se estivesse psicografando essa história, como que vomitando as palavras com violência neste papel úmido e amassado, arrumando com a tinta da gramática os mistérios recebidos, a experiência absorvida que agora jorra de meus poros. Esta seria a última parada antes do retorno à civilização, à vida deixada para trás, à meu antigo eu, o qual não seria mais capaz de reencenar. As feridas dos meus pés, as dores profundas em meus músculos e ossos em nada se comparam ao corte profundo que recebi em minha alma e que pretendo compartilhar com vocês. Não sei o que será de mim, nem de vocês, mas sei que o que fui, o que sou e o que fazemos com nossas vidas perderam totalmente o sentido anterior – outros se lhes configuraram – e caso eu não consiga regressar à sanidade – a qual talvez nunca tenha tido – peço que essas linhas sejam pulverizadas aos quatro ventos, que a mensagem da qual sou mero receptáculo chegue à humanidade como um alerta, um choque, uma trovejada. Um último suspiro. O ar que se esvai de um mórbido pulmão que finda o ciclo da respiração, que liberta a alma do corpo e se mistura à imensidão de almas que povoam o universo.

Após longos dias de caminhada pesada chegamos ao topo do monte Roraima. O percurso apesar de árduo, cheio de desafios, momentos de angústia, dor, cansaço, ímpetos de desespero em que nada daquilo fazia sentido, foi superado sem maiores prejuízos, como tantos outros pés e joelhos que aquelas trilhas açoitaram, manchando em camadas invisíveis de suor, sangue e dor todo o percurso. À jornada se projetou a vida. Cada passo em falso, cada tropeço, cada corte na carne, cada inchaço, bolha, fome, sono e sede me remetia a situações vividas, daquelas que de tão sérias e importantes, de tão vergonhosas e impactantes, decidimos esquecer, varrendo-as para debaixo da sombra de alguma memória mais alegre e sutil. Seguimos nossas vidas sem reconhecer nossos principais e mais profundos erros, aqueles que nos revelariam o contrário do que pensamos ser. Durante os infinitos passos ao pé e no dorso no Monte Roraima, minha história me foi apresentada bruscamente, parte a parte, como em uma briga de rua de meu ego com minhas mais profundas vergonhas, traumas, medos e atitudes imperdoáveis, que me mostrariam aos olhos de qualquer outro individuo como o mais vil de todos os seres. Apesar da extrema significância pessoal da superação dessa etapa, a que suponho passar em maior ou menor grau a maioria dos aventureiros que se lançam nessa empreitada – ou em peregrinações similares -, não cansarei vocês com minhas confissões, não os sobrecarregarei de lamentações e exaustivas narrativas que apesar do caráter baixo e duvidoso – pela conotação de reconhecimento do mea culpa -, teriam muito mais o intuito de exaltar minhas qualidades pessoais, enterrando novamente aquelas condutas criminosas sob o afagar de meu ego fragilizado, digno de pena, destacando o quão humilde e especial seria eu diante da espécie humana. Essas linhas têm outro intuito. Meu ego se desfez pelo caminho, não faz mais sentido sequer mencioná-lo por mais outra vez. Nem meu nome saberão. Minha história passada não merece sua atenção. Não mais do que a da pessoa que está ao seu lado. A partir de agora, ainda que minha perspectiva enquanto um sujeito único permeie o que segue, a sequencia de acontecimentos será narrada apesar de minha presença, a despeito de ter sido usado como ferramenta para que a mensagem chegasse até vocês. Antes, porém, devo fazer uma declaração. Já não sei precisar se o que vivenciei de fato aconteceu, se me foi revelado, se sonhei, se lembrei ou se fora um mero lapso de meus neurônios que em conexão com a montanha fizeram um download cósmico de experiências, relatos e vidas passadas, vividas ou inventadas.

Após a árdua subida, já sem energia, perdido de meu grupo, pernas trêmulas reclamando do peso do mundo, sob os últimos raios do sol que lambiam as folhas molhadas da vegetação fria e escura que me esperava entre a névoa suave que se espalhava ocasionalmente pela paisagem, tive um colapso. Algo semelhante ao corpo que sobra com pouco sangue e desfalece sobre a relva, mas de alguma maneira tive tempo de me sentar em posição de lótus. Não tenho como explicar essa sequencia, já que nunca meditei, nem sabia como me posicionar, nem nunca havia tentado. Mas em poucos instantes estava conectado com o universo como que se um cano inexistente quase da largura de minha cabeça guiasse a conexão jorrando energia, ou sei lá o que, para dentro e para fora de meu corpo, no sentido vertical, ao universo profundo. Nada disso me assustou, muito pelo contrário. A paz que conheci foi tamanha, o silencio foi tão profundo, que pude sentir o som da criação do cosmos. Recebi em instantes mais informações que jamais imaginei ser possível conter o infinito. Porém não me vinham como palavras, imagens ou vivências. Vinham-me como algo que se sabe profundamente, sem identificar a origem dessa certeza, mas com enorme convicção, daquelas que nos enche o espírito de alegria quando a reconhecemos em uma narrativa que nos explica algo que já intuíamos, que já compreendíamos. Não sei bem quanto tempo estive nessa situação de êxtase, de nirvana. Pode ter sido um dia todo ou alguns minutos. Apesar da manifestação maravilhosa que esse acontecimento me trouxe, o que veio a seguir foi o que mais me abalou.

Autorretrato de Bruno Franques no sítio Anel Viário, em Boa Vista-RR, em 2020.

Abruptamente um estrondo absurdo rompeu o silêncio profundo em que estava mergulhado ao mesmo tempo em que a terra toda se estremeceu com tamanha violência que meu corpo absorveu o impacto como um choque impetuoso que me arremessou alguns metros adiante. Se antes imerso no sagrado me encontrava na mais absoluta paz, gozando confortavelmente do calor e aconchego universal, em milésimos de segundo estava totalmente tomado por uma dor infinita em que meu corpo imediatamente se contraiu em posição fetal, tremulo e endurecido. Um frio intenso cortava minhas entranhas e congelava meu espírito que se esvaiu em um breu absoluto e um medo avassalador. Nada mais existia. Eu, meu corpo, a vegetação, o som da orquestra dos insetos e animais noturnos, tudo fora sugado para fora da realidade como se uma rachadura no universo tivesse levado toda a existência para outra dimensão. Ali, estático sem corpo no vazio da inexistência, uma presença imperiosa foi lentamente se configurando, se revelando diante de mim gradualmente, sem matéria, sem forma, mas com uma força inquestionável. No mesmo instante eu sabia do que se tratava. Era o Monte Roraima que se me revelava. Como uma só coisa, eu e o monte nos percebíamos silenciosamente e apesar de sua imperiosa grandiosidade no tempo e no espaço ser relativizada pela vastidão do universo a nossa volta, minha postura não poderia ser outra que não a reverência. Minha espinha se estremecia, meus olhos se inundavam, meu peito era comprimido como se estivesse no fundo do mar. Mas minha esperança me elevava acima das nuvens e eu sabia que estava à mercê do Monte. Seu semblante era sério e benevolente. Estava furioso, mas era claro seu respeito e cuidado com este representante da espécie humana e seu intuito de preservar minha existência. Eu estava ali por algum motivo. Se fosse de sua vontade eu seria esmagado em um flash de luz ou seria desintegrado em poeira e insignificância. Estava, no entanto, paradoxalmente confortável porque reconhecia a presença divina. O Monte era tudo e nada. Representava a energia cósmica e sagrada à qual estamos todos submersos. Era Gaia, Pacha Mama e Ogun. Era Olimpo, Vahala e o paraíso na Terra. Sentia-me parte de tudo. A mera configuração momentânea de átomos que me configuram ilusoriamente em separado de todas as outras coisas se desfazia e me impulsionava à sublevação da conexão total e do amor universal.

(Silêncio)

Após alguns instantes que me foram concedidos a fim de que pudesse assimilar a vastidão do universo sem tempo ou espaço, ou ainda as infinitas formas que o tempo e o espaço se configuram em realidades específicas, pude perceber o tempo do Monte no espaço, sua história e suas vidas. Presenciei seu nascimento quando com a erosão de seu entorno e realinhamentos das placas tectônicas ele se formou e se ergueu aos céus sob trovões e relâmpagos. Vi águas o submergirem e depois brotando de seu ventre. Presenciei a vida se formando ao seu redor. Primeiro amebas e protozoários, fungos e musgos. Depois, sucessivamente, animais, plantas e todo tipo de existência, que evoluía e se transformava. A presença do Monte sempre imponente, possibilitando a vida ao seu redor. Uma diversidade imensa de percepções e sensações, de borboletas de vida breve a dinossauros nômades. Grupos de animais que faziam do Monte sua morada, outros tantos que tinham no Monte sua referencia entre migrações, passagens e deslocamentos. Presenciei a tudo isso em um êxtase ainda maior que o nirvana experimentado anteriormente. Meu deleite era tanto diante do milagre da vida que meu espírito transbordava de algo inenarrável. Meu corpo, restituído em matéria sem que eu o notasse, sequer almejava me conter, me entregando de alma aberta ao contato divino. Novamente, não poderia quantificar em tempo humano quanto se passou. Vivi a eternidade. Presenciei maravilhado o reencantamento do mundo. Estava enfim, novamente, mergulhado no sagrado.

Amei a existência. Presenciei a evolução. Vi as diversas espécies humanas surgirem e se desenvolverem. Fui adorado como Monte, como deus, como morada dos deuses. Encarnei sucessivamente vidas inteiras, bem vividas, desperdiçadas, sacrificadas. Morei aos pés do monte e vivi em diversas sociedades. Entendi o mundo a partir de crenças e perspectivas, culturas e sistemas políticos das mais variadas estruturas. Subi suas encostas inúmeras vezes. Vi os europeus e suas armas dizimando povos que eu e o Monte deveríamos supostamente proteger. Vi florestas sendo derrubadas, o garimpo e a mineração abrindo feridas em nossas peles, assassinando nossos povos, ceifando nossas vidas. Vi tratados que traçaram fronteiras invisíveis, como navalhas em nossa carne, desmembrando-nos em três partes que se apropriaram de nossos corpos, levantando muralhas simbólicas que impediriam o livre transito por nosso território. Por incontáveis vezes me vi desesperançado, acuado e estraçalhado, saltando nas falésias, desesperado junto com meus filhos e meu povo do cume do monte divino rumo ao encontro do indefinido. Sofri o indizível, atrocidades e desilusões. Assistimos impotentes, pragas e pandemias se espalharem impunemente.

Como no despertar de um transe, a visão do topo do Monte Roraima me revelou milhares de pessoas caminhando maltrapilhas, crianças mortas sendo enterradas em beiras de estradas, famílias separadas por fronteiras frias, secas, duras e inexistentes. Seres humanos que perderam tudo, deixavam para trás familiares e amigos para pedir refúgio no país vizinho, vivendo nas ruas, sendo abusados, xingados, maltratados, pisoteados. Multidões em surtos violentos expulsando seus vizinhos sem o mínimo de compaixão. Corpos vendidos, mulheres precificadas, violentadas, assassinadas. Crianças no sinal, tentando comover seres embrutecidos, frios, secos e duros. Palavras de ódio lançadas de carrões de barriga cheia, vidros e corações fechados, insulfilm e ar-condicionado. Em meio ao caos, entre a lama de suor, sangue e desgosto, quase sufocado, implorando que me desfalecesse junto com meus irmãos, o sábio Monte redireciona meu olhar. Vejo agora inúmeros gestos de acolhimento. Doações espontâneas, redes de proteção, distribuição de alimentos, roupas, cuidados, carinho e afeto. Pessoas que vieram de outros lugares para ajudar na acolhida, montando um sistema de abrigamento em parceria com os três poderes e até o Exército realizando um trabalho humanitário com paciência, respeito e humildade. A Operação Acolhida passa a ser admirada e elogiada mundo afora. Agrupamentos, coletivos, instituições variadas, igrejas e ONGs tomando a iniciativa para cuidar das pessoas que a operação oficial não alcança, buscando facilitar os diversos aspectos, de trâmites legais às necessidades básicas, da busca por emprego e o translado para outros estados. Acalentos sendo construídos por coletivos de mãos esforçadas, almas caridosas, pessoas em missão.

Amanhecer no abrigo São Vicente 1, em Boa Vista-RR, em 2021. Foto de Bruno Franques.

O mundo todo olha desconfiado. Roraima desperta atenção, curiosidade e compaixão. Mas também xenofobia, aporofobia e preconceitos sem fim.

No país vizinho a desesperança e a impotência de um povo diante das dificuldades internas agravadas pelas atrocidades impostas por outras nações, outras cobiças, mas a mesma elite, o mesmo poder. Mais ao lado, uma configuração geográfica de difícil passagem, mas que leva à outro lugar, aparentemente com melhor expectativa de sobrevivência, é configurada como mais um obstáculo a ser superado e recebe um nome macabro: o vale da morte. Hordas atravessam milhares de quilômetros em estradas e trilhas improvisadas, noites congeladas, vidas estraçalhadas e desperdiçadas.

O Monte então me apresenta uma grande tela, como se alguém tivesse projetando um filme em suas encostas. Um cinedebate a céu aberto onde transitam políticos inescrupulosos que incentivam a violência porque lhes parece que assim obterão mais poder. Projeta-se no Monte atrocidades vividas por milhares de pessoas sem nação, sem direitos, dinheiro ou pão. Em meio à fartura, quase um milhão de pessoas morrendo de fome. Em meio ao luxo, a grande maioria na miséria. Em meio à paz. A guerra.

A guerra que se semeia pela fortuna enterrada em minérios e carcaças em putrefação. Por sua indústria do terror que se cria e se lucra com armas, tanques, mísseis, aviões, navios, submarinos e todo aparato e tecnologia que a mantém, além da manutenção e deslocamentos de seus exércitos.

Ilustração que homenageia Aylan Kurdi, menino sírio apareceu morto numa praia da Turkia após tentativa de migração em 2015

As opressões, explorações, situações de escravidão, assassinatos e mortes que uns poucos opressores impõem a milhares de seres humanos para manter seus privilégios, luxos, fortunas e acumulações cada vez mais volumosas. Mesquinhez, hipocrisia, egoísmo, crueldade.

A fome e desnutrição que dizima diariamente milhares de vidas, apesar da disponibilidade de alimentos e da abundancia que a terra nos oferece. E a crueldade com que se aproveitam dessa situação para promover uma agricultura devastadora, perversa e assassina, que derruba florestas, extermina povos, promove a grande concentração de muita terra para poucos, expulsando famílias camponesas, povos tradicionais, quilombolas e povos da floresta, assassinando quem ousa lutar contra essa lógica. E como se não bastasse envenenam nossa comida e tudo que toca no processo: trabalhadores do campo, solo, ar, lençóis freáticos, rios e mares. Os que se levantam contra essa grande engrenagem são assassinados. E além do mais, o problema inicial não é resolvido: porque a fome é uma manifestação biológica de um problema social, que se configura no acesso e distribuição dos alimentos disponíveis.

Já não suportando mais o mundo que criamos, o Monte se desfaz na minha frente, deixando um vazio no espaço. Percebo que o monte sou eu mesmo e a humanidade inteira. Mas é, acima de tudo, a Pacha Mama nos mostrando o que não queremos ver e que afeta todos os seres vivos. Seu aviso, no entanto é direcionado aos seres humanos. Muitos seres vivos que habitam sua epiderme vêm sendo extintos em decorrência da ação do homem há muito tempo. Dos que ainda sobrevivem, alguns estão correndo risco junto com a humanidade, outros se reproduzirão plenamente e continuarão por aqui vivendo, porque o planeta, nossa Mãe Terra, rapidamente cicatrizará das feridas e golpes do rastro de destruição e morte deixado após a breve e desastrosa aventura humana na Terra. Reflito um pouco e entendo que os sinais estão em toda parte: aquecimento global, mudanças climáticas, tsunamis, terremotos, erupções simultâneas de vulcões adormecidos, cataclismos generalizados das forças da natureza, liberação de vírus e bactérias pré-históricas, antigas há muito aprisionadas em geleiras em derretimento; E a transmissão de doenças entre espécies gerando surtos, epidemias e pandemias.

Abre-se então, das entranhas do agora inexistente Monte, um grande leito de rio que me mostra o que os chineses chamam de wu wei, o destino como sendo o curso que o rio deveria seguir, mas que por algum motivo, barragem ou assoreamento teve seu caminho modificado. O destino seria seu leito e por mais que agora tudo pareça perdido, infinitas forças atuam para que as águas voltem a fluir em sua corrente natural. Como vagalumes, as almas das pessoas que durante toda a história da humanidade se dedicaram a contribuir para que o rio voltasse ao seu curso normal, mesmo que a conta gotas, acenderam ao meu redor. E a luz era tão forte, e tão intensa que, flutuando no ar, iluminado também, meu corpo era parte daquela rede de luz. Levitamos juntos por entre raios e trovoadas, desmoronamentos e furacões, tsunamis e terremotos. Éramos tantos e tão firmes em nossas resoluções que as intempéries não nos abalavam. Mudavam sim nossa flutuação, mas suavemente, como plânctons no oceano, continuávamos iluminando os rumos da história. O Monte aos poucos foi sendo iluminado com ainda mais força pelos primeiros raios do sol em um espetáculo arrebatador. Eu me levantei extasiado, cansado, exausto, mas cheio de vida. Tinha tanto para fazer, ser e viver que o dorso açoitado era como tatuagens históricas do percurso vencido. Estiquei lentamente meus membros e visualizei um lago de águas puras, leitosas e resplandecentes. Mergulhei no sagrado como quem volta à vida e cheio de esperança, lentamente fui descendo o Monte e cada passo que me afastava, mais perto dele me trazia. Gradativamente fui percebendo que meu caminho estava chegando ao fim. Meus passos já não me levavam a lugar nenhum. Meu corpo não mais sentia, minha presença não existia.

Agora, sou apenas história. Mas também serei monte e árvores e rios e ventos e planícies.

E vaga-lumes no Monte Roraima.

Imagem realizada na órbita da Terra pela NASA.

*A imagem utilizada no destaque deste post está disponível na internet com as seguintes referencias e link: Huxley-Parlour, Sebastião Salgado, THE RORAIMA TEPUI, VENEZUELA (2006). https://www.pinterest.dk/pin/317503842486809941/



Monumentos de Barbárie

Escrituras Possíveis. Experimentações literárias para mudar o mundo.

Ep01: Monumentos de Barbárie

Primeiro episódio da série onde Bruno Franques apresenta suas produções literárias com comentários livres sobre o processo criativo, suas intenções e possíveis funções sociais das obras.

Leitura do conto “Flamingos Libertários” e da poesia “Ode à Humanidade”.

Os Flamingos libertários

Por Bruno Franques

Em meio à pandemia mundial ocasionada pelo Covid19 que forçou os seres humanos a se retirarem dos espaços públicos, diminuírem o comércio e a produção, a devastação ambiental e a destruição dos ecossistemas, um raio de luz pairou por alguns instantes sobre o planeta Terra. E na ausência do homem, os animais tiveram por algum tempo, uma brilhante esperança de que tudo estava se transformando, que a natureza iria se regenerar. Tiveram a impressão de que os homo sapiens tivessem sido banidos da existência por seu mau comportamento. As cidades desertas eram convites à exploração e alguns se aventuraram na pesquisa e averiguação. Uns por curiosidade quase científica, outros porque perdidos já estavam e não controlavam mais as paradas e destinos de suas migrações continentais, como foi o caso dos flamingos, que acompanharemos a seguir. Devo alertar o leitor que a partir daqui a licença poética da criação ficcional literária tingirá com cores fantásticas algo que, espero, não perca sua essência de realidade. Seja lá o que essa palavra “realidade” queira dizer.

Se eu fosse um flamingo talvez chegasse aos seguintes entendimentos sobre o que se passou e possivelmente tivesse tido as mesmas atitudes diante da descoberta. E, confesso, para poder narrar as linhas que seguem, tive que me infiltrar entre eles. Pense então em um ser humano transmutado em flamingo para que, entre um bando de cento e cinquenta mil  indivíduos, pudesse colher os detalhes disso que aqui vos apresento. Trata-se talvez de uma nova modalidade da antropologia de Malinowiski, que defendia que só seria possível qualquer narrativa sobre qualquer população se o pesquisador passasse determinado tempo vivendo como os povos que estuda. Se fosse possível, avançaria à Geertz e deixaria que um próprio flamingo falasse por si, ou como Jean Rouch, que levassem minha câmera e fizessem sua própria narrativa audiovisual a partir de suas perspectivas. Fiz o que pude, respeitando o que consegui da versão dos fatos que, acredito, eles mesmos, os flamingos, se pudessem, apresentariam.

O fato é que flamingos são aves migratórias, que viajam o mundo de acordo com as estações do ano, seguindo o que chamamos de instinto animal, para procriarem em um determinado local e gozarem a vida em um clima mais agradável quando a situação aperta. De uns tempos para cá, devido às mudanças climáticas desse nosso período antropoceno onde a humanidade está causando mudanças drásticas no comportamento do clima planetário, muitas vezes eles perdem o rumo e vão parar em locais não planejados.

Foi assim durante a pandemia do Covid19. Nosso bando aterrissou em Boa Vista, no centro da capital de Roraima, no Brasil. Pode-se dizer que foi por conta de nossa bússola já estar alterada há certo tempo, mas acredito que quando precisamos pousar, a cidade deserta nos convidou à usufruir de espaços antes pouco atrativos. Fizemos nossa morada provisória numa praça onde símbolos de poder estavam expostos há tempos imemoriais, como se sempre estivessem estado ali como se fossem manifestações da natureza, algo incontestes, imutáveis, inquestionáveis. Não fosse eu um ser humano infiltrado, ninguém iria se dar conta de que se tratava de estátuas históricas, monumentos erigidos para homenagear os vitoriosos de conflitos sanguinolentos, responsáveis por massacres irreproduzíveis, mas que figuravam na história dos vencedores como heróis. No caso especifico aqui relatado o monumento era em homenagem à figura do garimpeiro, que teria dado origem à ocupação recente da região, mas que continuam levando a destruição às terras indígenas, seja pelo desmatamento e contaminação das águas, ou pelas doenças levadas através do contato com povos isolados.

Aproveitamos a estadia ao máximo, vivendo cada dia como se fosse o último, já que nossa natureza assim nos direcionou. O leitor pode imaginar que a impermeabilidade do solo fez com que nossos dejetos se solidificassem no cimento, impedido de se tornarem fertilizantes da terra como seriam em outros lugares. E os excrementos que se acumularam nas estátuas se fizeram sólidos, escondendo aquelas figuras horrendas que a história oficial tratou de exaltar. Até aí tudo bem, se não tivesse a imagem das estatuas cagadas sido fixada em nossas memórias aviárias.

Quando voltamos um ano depois, as estátuas não estavam mais lá, o garimpeiro havia sumido. Mais uma vez, como sou humano, tenho informações privilegiadas e sei que foram derrubadas durante os protestos dos levantes históricos de 2021, que em diversas localidades do mundo os monumentos hipócritas da dominação foram destruídos em protesto contra esses símbolos da barbárie. Mas, flamingos que eram, acharam que as estátuas caíram por ação das merdas que depositaram sobre suas cabeças. O garimpeiro não poderia mais achar ouro em meio a tantas fezes. E em outras praças, eram caudilhos, bandeirantes, coronéis e demais genocidas,

Imaginem agora o quão estupefato fiquei quando descobri que os flamingos planejavam um plano de ação direta libertário. Considerando que suas ações intestinais fossem a origem de algo tão grandioso, e que suas rotas já estavam mesmo fodidas, planejaram os próximos vôos para que parassem estrategicamente em praças importantes que ostentassem símbolos incongruentes com o destino que a humanidade merecia.

E mais: conseguiram convencer outras espécies de aves migratórias a fazer o mesmo. Em pouco tempo os principais monumentos da barbárie humana estavam cobertos de bosta. Ingenuidade de aves ignorantes e irracionais pensariam alguns. Nada que jatos de água não resolvessem. Mas não foi assim. A população já não aguentava mais tanta opressão e aquela merda toda foi como um gatilho para a revolução. Em toda parte, surgiam hordas de revoltosos que seguiam as pistas de dejetos e derrubavam as estátuas cagadas e fizeram por fim, sem saber, aviltados pelos pássaros, a revolução que há muito não ousavam sonhar.

Ode à humanidade

por Bruno Franques

Saí para a rua decidido

Um monumento em ode à humanidade

Construído com muita dor e desilusão

Sobre deuses e símbolos sagrados

Páginas e páginas de escrituras em papel machê

Séculos de destruição e guerras santas, profanas e cruéis

Genocídios, fome, pandemias e destruição


Antes mesmo, porém, da primeira pedra levantar

Notei que chegavam determinados

Outros de minha espécie

Com pedaços de sonhos e pesadelos

Restos de culpas e pesares


Nem sequer palavra nenhuma

Assim Babel não seria em vão

Mas o silêncio profundo dos trabalhadores

Rompeu essa manhã aos sons do pulsar de nossos corações

Fizemos aquela homenagem com afinco

Buscamos materiais locais e artesanais

E fomos alimentados com abundância

Por homens e mulheres do campo, agricultores ecológicos

Que faziam esculturas diferentes

Florestas semeadas, manejadas, cultivadas

Geravam vida e regeneravam a esperança


Em nosso entorno indígenas de diversas etnias

Entoavam seus mantras com sábios eremitas

E mulheres de saias de chita

Lideravam a ciranda, flutuando no ar com força e decisão

Os pajés, padres, pastores, bispos e monjes

Entregavam seus cocares, mantos e livros santos

Para a comunhão da grande obra


Os que subiam com os objetos sagrados

Falavam do desenho arquitetônico a plenos pulmões

E gritavam aos céus suas orações em forma de lindas canções

Cujas palavras eram levadas pelo vento prestativo

E caiam molhadas sobre as mãos calejadas

Dos que ficaram na base com o trabalho pesado

Mas a sequencia harmonicamente circulava

E os que em cima estavam, agora baixavam

Abrindo espaço para que cada indivíduo decidisse

Por si e pelos demais, o seu caminho desejado

Respeitado, cultuado e sustentado

Nessa escultura social coletiva

Do mundo pós pandemia

Cada um era sagrado

E enterrava seu passado

Carregando consigo de presente

O futuro por todos enfeitado.

flamingos.jpeg

Não há noite que dure para sempre

por Bruno Franques

Melancólicos instrumentistas

Esses sapos, grilos e cigarros

Que sob verdes e pálidas luzes escurecidas

Por alheios pirilampos bizarros

Aos mil pássaros enfim entregam

A finda pauta infinita noite que se acaba


Por pouco que se calam exaustos

Dessa fina sinfonia escura e somem

Ao som do clarear aquecido

À revelia do que se passou esquecido

O dia insensível, ainda que redentor

Estupefato, enfim amanhece


Folhas e pastos ainda gotejam

Enquanto taciturnas noturnas atrozes

Abandonam seus instrumentos

Pendurados fincados na minha carcaça


Interrompem seu gozo na minha aflição

Sua obstinada missão virulenta

Sozinho em meu quarto fechado

Com minha camisa de carne semiaberta

Torturada e rasgada noite adentro


Rompem elas com seus açoites cortantes

Facas, foices, lâminas, canetas e bisturis

Cada veia que pouco sangue me aquece

Meu corpo quase sem vida, sem ar desfalece

Ofertando sanguinolento caído

Meu seco pobre coração perdido


Leve minhas derradeiras ilusões

Posto-as a ti numa bandeja

E que apenas mais este sacrifício baste

Suplico com meu último suspiro

Digo que estou sem ar, que não posso mais respirar


Tento argumentar que esse exemplar

Daquela mesquinha e destruidora espécie

Fosse recebido e amordaçado

Mas fui interrompido


Ei-lo aqui, outro órgão nefasto!

As Valquírias exibem minhas entranhas

Uma sacerdotisa sensualmente me envolve em seus braços

Eu e minha ridícula individualidade egoísta

Amparado em minhas angústias mais sombrias


Ensanguentado e despedaçado

Mas meu corpo é cuidadosamente arranjado

Entre flores, ervas e sinais

No ventre de Gaia

Novamente em Gaia ele jaz


Entre as trevas de meu funeral

Desperto em um grito mudo e desesperado

Sem ar, sem som, sem palavras abafadas

Mas o corpo morto, caído e enterrado

E cada vírus em meu cadáver alojado

Em cada molécula sem vida despedaçado

É ali, no nada desintegrado


Tento então juntar minhas partes estraçalhadas

Espalhadas por sobre os lençóis inertes

Fragmentos de carnes, sonhos e promessas

Lembranças de vidas passadas

Infâncias violadas e mortas

Corpos atravessados por balas perdidas

Milhares de pescoços sufocados por joelhos embrutecidos

Crianças maltrapilhas caindo de prédios luxuosos

E estranhas entranhas putrefatas

Das cicatrizes subcutâneas de epidermes costuradas

Tantas mortes subnotificadas, Amazônia, floresta saqueada

Genocídios incessantes, recorrentes, com requintes de crueldade

Decapitações, mutilações, pedaços de mundos esquartejados

Ossos semiquebrados, subcalcificados, pulverizados

As veias abertas da humanidade oprimida


Nossas carnes infectadas em putrefação

Amontoadas em valas comuns nos perguntamos:


Que humanidade não deu certo?

Quem responde por esses crimes?

Todos nós, os mortos e executados?

Seres humanos subjugados, incessantemente culpados?


Não seria essa civilização ocidental imperial?

Genocida, podre, autodifusora?

Monoculturas estéreis, envenenadas e condenadas

Moribundo modo de vida que nos quer sacrificar

Psicopatas eleitos e pastores do apocalipse

Decidem nossos destinos em campos de golfe

Nas reuniões da OMC

E o que falhou foi a humanidade?


Ofereço meu corpo podre

Ainda humano, humano demasiado


Com o que resta de meus pulmões

Piso firme-trêmulo de espinha semi-ereta

Coração ferido e alma dilacerada

Olhar nessa fresta dos quase mundos

E meio que respiro, nada aliviado


Recebo de volta meu olhar do horizonte

Ainda na porta do quarto

Ancorado no batente de meu corpo

Sem distinguir sonho, pesadelo e realidade

Sinto a brisa fria da manhã

Vejo corpos mortos na calçada

O vento lava meus fétidos odores

E a água leva minhas dores


De peito vazio, amores em vão

Olho para as flores na varanda

Os brônquios não respondem

Calejados, inflamados e enrijecidos

Congelando meu suor entristecido

Arrepio em minh’alma que se desmancha no ar


No horizonte, para além da pandemia

Ainda seguro meu olhar

Roupa molhada, intensa dor nas costas

Pulmões opacos, sina maltrapilha

Pele lastimada, de aparência maltratada


Sem saber se de lágrimas ou suor

Essas poças que nos inundam

Alagado e pantanoso frio brejo do destino

Onde passo minhas noites sem ar

Afogado em meus próprios lamentos

Escondido do mundo, lockdown de quarentena

Lambo asperamente minhas feridas esquecidas


Puxo o cobertor e me vejo nu

Pulmões opacos dessa sina maltrapilha

Epiderme lastimada, automutilada e maltratada


Navego perdido entre tormentos alheios

Não são seus nem meus esses devaneios

Tormentos nossos, pesadelos reais


Trato meu Covid afastado

Sendo apenas mais um infectado

Depois dessa, quantas mais?

Logo amanhece, mas depois a noite cai


Não há noite que dure para sempre


Melancólicos instrumentistas

Esses sapos, grilos e cigarros

Que sob verdes e pálidas luzes escurecidas

Por alheios pirilampos bizarros

Aos mil pássaros enfim entregam

A finda pauta infinita noite que se acaba


Por pouco que se calam exaustos

Dessa fina sinfonia escura e somem

Ao som do clarear aquecido

À revelia do que se passou esquecido

O dia insensível, ainda que redentor

Estupefato, enfim, amanhece

Confissões de um Covid

Um conto de Bruno Franques

Apesar de ter sido feito vírus sem querer, posso sentir que não sou bem quisto. Minha existência depende de sua morte. E por isso sinto muito, lamento mesmo. Se pudesse diferente seria, mas não tenho como. Dizem que surgi para vocês de uma gota de sangue de morcego, como nas receitas das bruxas dos contos de fadas. Mas de fadas, contos e narrativas mitológicas da abstração humana não tenho nada. Apesar de invisível a olho nu, sou bem real e por um tempo seguirei sendo o terror entre vocês. Mais uma vez, peço que me desculpem. Não foi minha intenção. Queria eu ser vegano, viver de luz, de ar, de energia inanimada. No entanto a natureza me fez assim, com essa ânsia pela multiplicação, pela preservação da minha espécie na carne de vocês. O relato que segue não tem o intuito de jogar de volta contra vocês a hipocrisia qe dedicaram aos meus, mas apenas, se possível, figurar como desabafo de um vírus maldito.

Os vírus somos organismos acelulares que surgiram junto com a vida na Terra há mais de quatro bilhões de anos. Não fique tão surpreso com nossa ancestralidade, por favor. Talvez deva ficar mais temeroso com o presságio a seguir: vocês irão, nós ficaremos. Não, não, não se trata de uma ameaça. Não pretendemos extingui-los. Acho que vocês mesmos estão cuidando disso. O fato é que depois que vocês forem extintos, seja lá por qual razão, a vida continuará, o ecossistema planetário encontrará novamente seu equilíbrio, se recuperará da destruição do Antropoceno e seguirá seu curso, garantindo nossa existência.

Vivia feliz e satisfeito entre os morcegos e a eles não fazia mal. Coisas da natureza. Por obséquio, sendo você um ser humano, saberia me dizer quantas formas de vida existem em seu corpo? Criaturas microscópicas como bactérias, vírus, fungos e arquea, que em simbiose, mutualismo, alguma outra forma de coexistência ou até como parasitas menos agressivos? Pois é, são milhões para cada corpo, formando um microbioma que compõe mais da metade das células de um ser dito humano. Agora imagine toda forma de vida que vocês reconhecem, dão valor e mesmo assim não respeitam. Cada uma delas carrega consigo colônias e colônias de micro-organismos. Cada corpo é um turbilhão de vida e morte. E é nesse universo que vivo minha sina.

Voltando à narrativa da tragédia anunciada, vivíamos eu e os meus, completamente plenos de existência na corrente sanguínea de algumas espécies de morcegos. Como foi que fomos parar nas veias dos humanos não me pergunte. Mas se aí agora estamos, temos que manter nossa luta pela sobrevivência. Fariam vocês diferente se estivessem em nossa situação?

Cagada posta, ainda tivemos a decência de tentar adoecer e matar democraticamente, uns humanos aqui, outros ali, independente de classe social, constituição física ou poder local, salpicando a morte para nossa manutenção da vida. Esse era nosso plano. Se soubessem, nos chamariam de Democraticovid, mas não perceberam. Ora, quem mudou essa configuração foram vocês!  Entregavam-nos a corpos cansados, idosos, excluídos, subjugados. Os privilegiados entre vocês se protegiam, faziam home-ofice, eram atendidos em clínicas particulares. Se não alimentássemos o amor fraternal que vocês gostam de dizer como exclusivamente humano, teríamos festejado essa ignorância. Mas não. Lamentamos e registramos aqui os nossos mais sinceros pesares.

Por acaso acham que podem culpar-nos por circular livremente entre corpos sem máscaras? Desavisados, usufruímos do sistema de jovens e crianças muitas vezes sem levá-los a óbito, mas não podemos sozinhos nos conter a eles. Sem máscaras, água e sabão ou álcool em gel, acabamos migrando para corpos mais frágeis e com isso selamos também nosso destino. Na maioria das vezes morremos junto com nosso hospedeiro, apesar de alguns de nós ainda conseguir migrar para algum profissional de saúde na última hora.

Queremos viver em harmonia com vocês e não provocar nada além de sintomas fracos, como se fôssemos mais uma gripezinha. Mas para isso precisamos de ajuda, de um movimento mundial em sincronia e cooperação. Caso contrário iremos nos transmutar e anular o efeito das vacinas que vocês desenvolvem e aplicam sem sincronização. Por hora, o Brasil é o lugar perfeito. Se você for um vírus do Covid19 no ano 2020, lugar melhor não há! Além do mais, todos sabem que não existe pecado do lado de baixo do Equador!

Precisamos deixar claro uma situação. Foi-nos atribuída uma função que nada tem a ver com nossa intenção ou natureza. Como espero estar ficando claro para vocês, nosso plano original era democrático. Acontece que vocês colocaram suas vidas nas mãos de pessoas sem escrúpulos, que viram em nossa atuação uma grande oportunidade para livrar o estado do peso de algumas vidas que na visão deles só oneram o orçamento público.

É necropolítica que chama, né? Quando a morte é estratégia de governo. Quando eliminar os corpos indesejáveis faz parte de um plano maior e os estrategistas abstraem o valor da vida considerada supérflua, marginal, onerosa ou perigosa, defendendo a manutenção de seus privilégios. Nessa sociedade ocidental judaico-cristã sempre foi assim. Índios, ciganos, comunidades tradicionais, migrantes, aposentados, desempregados, LGBTQIA+, pretos e pobres atrapalham o progresso. Melhor seria se não existissem. Como se não bastasse poderia-se ligar artificialmente todos os problemas do mundo moderno à superpopulação planetária. Da fome à degradação ambiental, das violências ao inchaço urbano, à escassez de recursos, ao consumo predatório e todo tipo de desordem e à própria necessidade de políticas públicas. Higienismo, gentrificação, fascismo, nazismo, eugenização, faxina étnica. Guerras, repressão policial, exclusão social. Em cada época, em cada lugar, nomes diferentes, a mesma proposta mortal. E agora cai do céu um vírus que pode ser aproveitado para resolver essa questão tão complexa. Protejam as camadas importantes e deixe morrer os indesejados. O bem estar social agradece.

Não! Não aceitaremos mais calados que coloquem sobre nossos ombros a culpa que não nos cabe. Nem ombros temos, nem vida somos, para sermos mais exatos. Somos ácidos nucleicos envolvidos em cápsulas proteicas que se unem a células aleatoriamente para manter nossa existência, seguindo o fluxo universal da entropia e disseminação energética, da transmutação da matéria, auxiliando a evolução das espécies. Há evidências de que o genoma humano é formado por milhões de DNA de vírus antigos. Então não nos atribuam significados que não nos são intrínsecos. Assumam suas próprias perversidades e nos deixem livres à nossa própria insignificância. O que não queremos é sermos também gado, massa de manobra para que uns poucos canalhas continuem surfando sobre a Terra plana da ignorância estabelecida.

Se acreditássemos em uma origem divina, numa providencialidade arquitetada, pensaríamos que nosso papel pudesse ser muito mais nobre. Como não perceber as extremas coincidências que revelamos em diversos aspectos? Os ecossistemas naturais têm sido exponencialmente reduzidos pela humanidade levando a reaproximações abruptas entre humanos e espécies silvestres que vão perdendo seus habitats naturais e que há muito não tinham mais contato. Vocês acham que vai parar nessa pandemia? A derrubada e a queima das florestas estão colocando em risco a capacidade de renovação do ar que respiram. E então aparece um vírus que compromete principalmente o sistema respiratório dos humanos. O avanço do seu domínio sobre a natureza é emblemático em diversos aspectos como o grande vetor que está levando o planeta para um colapso sistêmico e então vem uma peste que obriga os seres humanos a recuarem, a queimarem menos combustíveis fósseis, diminuírem a produção e a circulação. E como cereja do bolo, obriga esses seres egoístas que desenvolveram uma capacidade absurda de se isolarem em meio a multidões a se fecharem em casa e conviverem por longos períodos entre outros seres humanos, aqueles que teoricamente teriam maior proximidade a ponto de considerar família e justificar os atos mais mesquinhos de acumulação e egoísmo diante dos demais. Um tempo de reclusão forçada para pensar sobre suas atitudes e o modo de vida predatório que se instaurou no mundo globalizado.

Mostramos a fragilidade e importância dos sistemas nacionais de saúde de muitos países. No Brasil, o SUS que estava sofrendo um processo de desmonte recebeu a merecida atenção e esperamos que a crise sirva para fortalecê-lo.

Pense na questão agrária. No século passado houve um movimento forçado, que ainda continua, de expulsão da população do campo e consequente inchaço das cidades. Os grandes latifúndios tomando terras de populações tradicionais, povos originários, quilombolas, agricultores familiares. E tudo isso para produzir commodities, acabando com a soberania alimentar, monopolizando o uso da água, exterminando a diversidade de fauna e flora e ainda por cima envenenando o alimento que vocês mesmos irão comer. Agora vocês estão sendo obrigados a fugir das aglomerações. Não seria a hora de pensar em um movimento contrário, de reforma agrária, estímulo à diversidade dos modos de vidas originários e tradicionais, assentamentos, pequenas ocupações e uso sustentável da terra? Não seria a hora de estimular um grande êxodo da babilônia?

E esse crescimento a qualquer custo? Quando vocês vão entender que não há planeta suficiente para sustentar o modo de vida que vocês almejam? A necessidade de manter a indústria a todo vapor está acabando com o que vocês chamam de recursos naturais, gerando quantidades absurdas do que vocês chamam de lixo e poluição, drenando energia e vida num processo extremamente exploratório, opressor e desigual. E o pior, para produzir coisas que ninguém precisa, ou para produzir incessantemente produtos feitos para durarem muito pouco, justamente para manter essa lógica insana. A pandemia segurou um pouco a produção e o comércio, mostrando que é possível passar algum tempo sem consumir nada além do básico, evidenciando o que é de fato essencial. Aliás, foi também um período em que se destacaram os trabalhos realmente importantes. Um caixa de supermercado ou profissional encarregado pela limpeza nos hospitais parecem agora muito mais imprescindíveis à vida do que um especulador do mercado financeiro ou um CEO de sei lá o quê, não acham? Parece que, salvo os médicos, vocês estiveram invertendo tudo, valorizando extremamente os trabalhos inúteis e tratando como supérfluos trabalhos que não podem parar nem numa pandemia planetária.

Falando em economia, parece que agora – em alguns países pelo menos -, se deram conta da necessidade da garantia de uma renda mínima para todos e da taxação das grandes fortunas. Redistribuição de renda que chama né? Não foi Aristóteles que certa manhã, deitado sobre a relva a filosofar sobre a vida, admirando um arado puxado por tração animal vislumbrou que chegaria um dia em que a máquina poderia substituir o trabalho braçal, liberando os seres humanos para viverem de fato suas vidas, algo que depois viria a ser chamado de ócio criativo? Pois bem, viemos para dizer que a hora é essa!

E a educação? Parece um problemão as crianças em casa sem ter com o que se distrair e vocês terem que passar mais tempo com elas né não? Mas… péra… não era para ser essa a primeira responsabilidade dos pais? A de receber os recém-chegados à vida e envolvê-los em amor e carinho, introduzindo as questões do mundo pouco a pouco até que pudessem estar aptos a sair do ninho? E a escola? É de fato essencial? Quantas sociedades existem ou já existiram onde a educação acontece em meio à vida social, em que todos se responsabilizam pela mediação entre as crianças e adolescentes e as interações com a realidade e o estar no mundo? Será que essa parada estratégica também não pode servir para que o papel da escola seja repensado? O que se ensina e a maneira como se ensina é de fato o melhor que vocês podem conceber? Isso sem falar nas invasões colonialistas que acham que tem que enfiar esse modelo de escola em tudo quanto é canto do planeta, acabando com a autonomia de povos e culturas ancestrais em prol da promoção desse mesmo modo de vida que está levando a vida ao colapso. A escola de vocês é um apagador de futuros possíveis, uma fábrica de opressão e consenso onde se entra diverso e criativo e se sai tolhido, reprodutor, escravo conformado do sistema que a mantém.

E falando em educação, se não formos um vírus educativo não sei o que somos. Estamos aqui para soar o alarme, para dar-lhes um vigoroso tapa na cara. Mas se nem assim vocês entenderem a mensagem, sinto dizer-lhes que os próximos virão com mais força. Se nenhuma lição for aproveitada, o novo normal não terá nada de novo e vocês continuarão forjando sua própria extinção.

Somos simplesmente vírus, sem poesia ou coração. Não temos polegares opositores, não criamos narrativas nem arrependimentos. Mas a falta disso tudo em vocês está nos causando arrepios. Seguiremos matando porque somos assim. E vocês, o que são?

Bruno Franques